sexta-feira, 18 de maio de 2012

A chuva caía.

A chuva caía.

Depois de um dia razoavelmente quente passado em Peniche, regresso a Sintra e tudo muda.
 Ao final da tarde chegou a chuva. Persistente, abundante, enternecedora. E isso fez-me lembrar um extraordinário poema de Augusto Gil. Ele aqui fica!

A frouxa luz da tarde esmorecia.
Era de ardósia e oiro todo o poente.


A chuva caía,
Monotonamente...


O crepúsculo entrou; encheu a sala...
Ao fundo, as altas chamas do fogão
Vibravam numa palpitante escala,
Numa ansiosa e trémula ascensão
De tons de coralina e tons de opala.


Falamos sobre o amor em frases vagas,
Sem alusão directa ao nosso amor,
Como quem quer poupar a duas chagas,
tocando nelas, uma inútil dor...


Tomei-te as frias mãos por uns instantes.
Cingi-te, leve, ao coração, depois.
Mas como nós estávamos distantes!
Havia o infinito entre nós dois!


Tornara-se o silencio mais silente,
E o que o nosso falar não exprimia
Era o próprio silencio inconfidente
Que no-lo segredava e repetia
Monotonamente...


Monotonamente,
a chuva caía...


Trouxeram luz. Cavou-se mais então,
Entre o teu ser e o meu, a solidão...


Tanta e tão grande foi, que parecera
Que todo o escuro que no sala houvera
Se condensara num serrado véu
E enrolando-se a nós, nos envolveu


Num grande luto soluçado e fundo,
De encher mil vidas, comover o mundo...


Disse-te adeus. Beijei-te sorridente.
Adeus! disseste; e o teu dizer sorria.


Monotonamente,
A chuva caía...


Mas logo num acesso repentino,
Em nossos olhos irrompeu um pranto
Despedaçante, intérmino, assassino...


Pranto que, quando as fontes lacrimais
Se ficam secas de chorarem tanto,
É a alma que chora mais, e mais,


E mais, e ainda, e sempre, de tal sorte
Que fica a soluçar - até à morte..


O amor, fio de aranha quebradiço,
Um sopro o quebra e ninguém mais o reata.
Mas ai de nós! Rompeu-se, e nem por isso
A dor que ele nos deixa se desata...


Num abraço de corpos naufragados
Que nossos prantos num só pranto unia,
Quedámos sucumbidos e prostrados,
Até que já no céu luziu o dia


... Um dia pálido e deliquescente.


E a chuva caía,
Mais triste, mais fria,
Monotonamente...


Um pouco longo, talvez! Sem o rasgo de génio da Tabacaria do Fernando Pessoa, mas de qualquer modo um belo poema ao amor com a chuva como pano de fundo.

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